Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Direito Penal e a prova dos nove: o exemplo americano

A ideia de que o Direito Penal obedece a critérios de lógica e de aritmética é uma das funestas ilusões dos que saem das Faculdades de Direito e entram na vida prática. É tanto menos assim desde a entrada em vigor do Código Penal de 1982, com o espectro diversificado no âmbito da dosimetria penal abstracta e com a ampla possibilidade de atenuação especial e de penas alternativas, o que tem levado à disseminação das penas suspensas, ou seja ao fosso entre as penas previstas na lei e as efectivamente decretadas e entre estas e as efectivamente sofridas.
Num tempo em que grassa uma hipnótica fixação nas soluções oriundas do Direito norte-americano, um facto relevante ocorreu esta semana no âmbito da proporcionalidade das penas.
Existem, como se sabe, no Direito Criminal Federal norte-americano as denominadas Guidelines, que são critérios orientadores para a aplicação de penas, após o veredicto sobre a culpa. Podem ser consultadas aqui. São balizas dentro das quais o julgador deverá agir ao sentenciar. Este ano está em aberto a possibilidade da sua revisão [ver aqui]. Criam a ilusão de ordem, organização, racionalidade, método, proporcionalidade e igualdade.
Há inclusivamente já um portal que oferece uma estimativa de cálculo da pena expectável [ver aqui], Um espaço de reflexão e de sistematização de dados sobre as mesmas pode ser encontrada aqui.
A polémica surgiu, porém, depois de um juiz federal [United States District Court in Alexandria, Va.] ter condenado Paul Manafort [director de campanha do actual Presidente] a 47 meses de prisão por oito crimes que fraude fiscal e bancária, quando, de acordo com a referidas Guidelines ao caso caberia uma pena entre 19 a 24 anos de prisão, tal como vinha proposto pela acusação pública [ver aqui], na sequência da acusação contra ele deduzida [ver aqui].
Segundo o juiz, seguir as referidas Guidelines resultaria numa condenação excessiva.
Conclusão: nem toda a aritmética resiste à prova dos nove.

Notícias ao Domingo!



DCIAP/Branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo/delegação de poderes: dada a maior afluência de processos referentes a estas matérias, regulados pela Lei 25/2008, de 5 de Junho [ver aqui], o Despacho n.º 11076/2016 [ver aqui] procedeu à delegação, por parte do Director do DCIAP de poderes inerentes a actuação no domínio do combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo em mais procuradores daquele Departamento, «designadamente» [e o advérbio suscita-me dúvidas de legalidade por indeterminação pois que a delegação exige-se seja expressa] os Procuradores da República Dr. Jorge Humberto Gil Moreira do Rosário Teixeira, Dr. Carlos Alberto Casimiro Nunes, Dr.ª Inês Catalão Sena Henriques Bonina, Dr.ª Carla Susana Teixeira Figueiredo, Dr. Rui Pedro Correia Ramos Marques, Dr.ª Ana Cristina Nunes Catalão, Dr.ª Isabel Maria Lopes Nascimento, Dr.ª Ana Cláudia Perfeito de Oliveira Porto, Dr. Ricardo Jorge Bragança de Matos, Dr.ª Sílvia Maria Frias Gaspar, Dr.ª Tahamara Amina Thurn -Valsassina dos Santos Dias, Dr.ª Paula Cristina Silva Nunes de Moura, Dr.ª Ana Cristina Lopes Pereira, Dr. João Paulo Anastácio Centeno, bem como os Procuradores adjuntos Dr. Filipe Carlos Marta Pereira da Costa, Dr.ª Marta Patrícia de Correia C. Viegas e Dr.ª Rita Cláudia Costa Simões. 

Banco de Portugal/Boletim Oficial: foi publicado o Boletim Oficial n.º 9/2016, de 15 de Setembro no qual constam as Instruções 11/2016 [comunicação de riscos de incumprimento] e 13/2016 sobre Normas de Contabilidade Ajustadas. Ver aqui.

Brasil/Corrupção/projecto de lei António Thame: está em discussão o projecto de lei cujo texto pode ser lido aqui; o iter parlamentar está aqui; a posição do Bastonário da Ordem dos Advogados do Brasil consta aqui;

EUA/CFTC/Pagamento a denuncianates: já não apenas a SEC americana, como noticiei anteriormente aqui, a ter um programa específico para pagamento aos denunciantes. Também a Commodity Futures Trading Commission (CFTC), entidade incumbida da regulação dos mercados, cujo site pode ser visto aqui tem um programa idêntico que pode ser consultado aqui, cujas regras estão aqui.


Cego, Advogado da Google tive um colega de curso a quem a cegueira não impedia de ter dos livros uma exacta percepção, dos códigos uma noção da sistemática. Estudei com ele e vi a entender definitivamente o que é o essencial do pensamento jurídico, a capacidade de arrumação dos conceitos, no caso a juntar a uma notável memorização. Lembrei isso ao ler esta notícia aqui.


Leitura/Branqueamento de capitais/:The Panama Papers: after the dust has settled  publicado em Agosto de 2016, pelo Vortex Centrum Limited [aqui], parte da companhia Anti Money Laundering Network. O livro contém duas partes.

(i) «The Panama Papers: after the dust has settled; The general media has focussed on the alleged criminality and even the morality of some of the thousands of clients of a large law firm. However, there is another aspect to the case that should worry financial crime risk officers: it's one we, at The Anti Money Laundering Network, our Group, have been warning about since the mid 1990s - and others have consistently told us we were wrong. Mossack Fonseca's defence of its dealings with some high profile persons and entities proves that we were right all along and the big law firms and accountancy / consultancy practices in addition to professional membership groups and even regulators were the ones who had it wrong. 

«(ii) US and others face dilemma over Malaysia's 1MDB money: "Over the course of an approximately four-year period, between approximately 2009 and at least 2013, multiple individuals, including public officials and their associates, conspired to fraudulently divert [thousands of millions] of dollars from 1MDB through various means." - USA Justice Department Court Documents. » [da apresentação; pode ser adquirido aqui]



Colaboracionismo penal: onde está o Wally?


A partir de uma entrevista de um juiz [vê-la aqui], a simpatia pelo colaboracionismo voltou para a ribalta como tema, pois uma pergunta vaga e uma resposta ambígua abriram campo ao mesmo. Na verdade, ante o que vi e ouvi e depois li, não estou certo quanto ao objecto da simpatia. A questão é complexa, divide-se em vários segmentos e se os leigos podem confundir, cabe aos juristas distinguir. Permito-me pois o exercício seguinte. Há várias modalidades em causa no que ao colaboracionismo respeita. E aqui fica como exercício de reflexão para os que queiram encontrar o Wally das respostas o que lanço como puzzle de perguntas.

Denúncia facultativa e obrigatória: se há crimes que só certas pessoas podem denunciar através do que se denomina queixa, outros podem ser denunciados por qualquer pessoa [os denominados públicos], e há, finalmente, os crimes cuja denúncia é obrigatória para certas pessoas: os funcionários públicos quando tiverem conhecimento da prática dos mesmos através do exercício das suas funções. Sucede que, dado o conceito amplíssimo de funcionário público, há uma questão que consiste em saber se todos eles estarão adstritos a esse dever de dar notícia da infracção ou só os funcionários no sentido jurídico-administrativo do termo.

Denúncia anónima: o nosso Direito Processual Penal admite-a e com base nela o procedimento criminal pode ser instaurado. Apesar de não ter autor conhecido [ou tendo autor com identificação suposta] esta denúncia tem eficácia, embora possa não fazer prova em si, já que o nela relatado terá de ser provado através da investigação criminal. E se o crime descoberto for outro que não o denunciado, sendo a localização, porém, por ela propiciada?

Denúncia transaccionada com contrapartida: o nosso Direito parece impedi-la, ao considerar provas proibidas as obtidas com promessa de vantagem legalmente inadmissível, mas como a denúncia em si não fará prova, a regra em causa não tem aplicação directa pelo que urge encontrar preceito jurídico que impeça tal tipo de acordo, considerando ser a contrapartida a dita vantagem legalmente inadmissível. Para além disso, a aceitar-se a tese da admissibilidade parcial, importa determinar qual o tipo de contrapartida que pode ser consentida, ou seja, se valem promessas de benefícios processuais (nomeadamente ao nível das medidas coactivas), se quanto à pena aplicável, se quanto ao modo como a mesma será executada ainda que em regime prisional, ou no que refere à delimitação do objecto do processo (omitindo a acusação menção a certos temas que envolvam o denunciante "facilitador", ainda que com reserva de uma acusação em tempo futuro ou sob condição).

Delação de "arrependido": a prova incriminatória do "arrependido" pode valer no nosso Direito mesmo que se não prove a sua condição de penitente em acto de contrição, mas a de rancoroso vingativo ante outros, "entregando à morte" comparsas de quem apenas se desligou? 

Delação premiada: um acordo formal entre as autoridades judiciárias e um arguido através do qual este se comprometa a sustentar em juízo teses que levem à condenação de outros [modelo brasileiro] ou, no mínimo, a orientar a investigação criminal no caminho certo, é admissível, implicando concessão de benefícios ao outorgante, mesmo a nível da pena, para além do regime especial de protecção da sua pessoa? 

Remuneração da denúncia: o pagamento de denúncia em matéria de crimes com recorte financeiro [modelo americano], a fazer-se numa lógica mercantilista que leve em conta o ganho pecuniário obtido com as penas e a perda de bens face ao custo da gratificação dada ao delator, é viável ou desejável l?

Tudo visto e perante estas questões e tantas outras em que elas se desdobram onde está o Wally que tudo isto suscita num mundo que, pelos vistos, está a tornar-se um outro mundo, antecâmara de coisas do outro mundo? Eu sei que haverá quem diga: seja como for, o crime é sempre mais repelente do que modo como ele se descobre. Como se os fins justificassem os meios. A questão de sempre.

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Fonte da imagem: aqui

Denúncias remuneradas: os EUA e os seus "sucessos"


Já tinha aqui feito uma breve menção. Venho hoje aqui com mais detalhes. Para os que têm fixação na justiça norte-americana, importa saber como ela funciona numa lógica mercantilista, de correlação do custo/benefício, quantas vezes em detrimento dos valores que foram e creio que ainda serão os fundamentos do que consideramos o Estado de Direito.
Entre nós a ideia de um denunciantes aliciado pelas entidades que recebem a denúncia, a prova obtida mediante a concessão de benefício material entra nos limites da prova proibida. 
Não é assim nos Estados Unidos. Tomo como exemplo que se passa na SEC, a Securities & Exchange Commission, o organismo que regula o mercado de valores mobiliários..
Ali pratica-se a delação remunerada, a instigação à denúncia, o fomento através do dinheiro aos whistleblowers.. Decorre de uma lei aprovada pelo Congresso, firmada pelo Presidente, a secção 922 do Dodd-Frank Act [ver aqui]. Há um procedimento oficial para escolher os que podem ser admitidos como denunciantes, e regras para o cálculo da gratificação. Há mesmo um organismo incumbido de gerir este meio de obtenção de informação [ver aqui]
Feitas as contas, tal como anunciado em comunicado oficial da directora da instituição, Mary Jo White [ver aqui], o organismo obteve mais de 500 milhões de dólares em multas, tendo pago mais de 107 milhões aos denunciantes, sendo a mais alta soma a de 30 milhões de dólares. De acordo com a mesma fonte foram recebidas cerca 14 000 denúncias desde 2011, data em que o programa foi aprovado. É tido ali como um método de sucesso. E o pragmatismo que impera na cultura americana faz com que esse seja o critério mais relevante: o que conta é o resultado, no caso o número de infracções que se detectam, sem saber como se chegou lá.

Cooperação criminal de empresas: o caso norte-americano



Os princípios básicos para o Foreign Corrupt Practices Act (1977), emendado (15 U.S.C. §§ 78dd-1, et seq.) foram estabelecidos há um ano, nos EUA, no memorando Yates [ver aqui].As regras orientadoras da cooperação para benefício por parte das empresas visadas pelas investigações sumaria-se nesta frase do mesmo:

«In order for a company to receive any consideration for cooperation under the Principles of Federal Prosecution of Business Organizations, the company must completely disclose to the Department all relevant facts about individual misconduct. Companies cannot pick and choose what facts to disclose. That is, to be eligible for any credit for cooperation, the company must identify all individuals involved in or responsible for the misconduct at issue, regardless of their position, status or seniority, and provide to the Department all facts relating to that misconduct. If a company seeking cooperation credit declines to learn of such facts or to provide the Department with complete factual information about individual wrongdoers, its cooperation will not be considered a mitigating factor pursuant to USAM 9-28.700 el seq. 2 Once a company meets the threshold requirement of providing all relevant facts with respect to individuals, it will be eligible for consideration for cooperation credit. The extent of that cooperation credit will depend on all the various factors that have traditionally applied in making this assessment (e.g., the timeliness of the cooperation, the diligence, thoroughness, and speed of the internal investigation, the proactive nature of the cooperation, etc.).»


Em resultado da actividade do organismo foram decretadas penas de prisão já significativamenet severas e que um estudo académico elencou aqui

1. Joel Esquenazi: 180 months (2011)

2. William Jefferson: 156 months (2009)

3. Charles Paul Edward Jumet: 87 months (2010)

4. Carlos Rodriguez: 84 months (2011)

4. Herbert Steindler: 84 months (1994)

5. Douglas Murphy: 63 months (2005)

6. Shu Quan-Sheng: 51 months (2009)

7. Benito Chinea: 48 months (2015)

7. Joseph Demeneses: 48 months (2015)

8. Jorge Granados: 46 months (2011)

9. David Kay: 37 months (2005)

9. John Webster Warwick: 37 months (2010)

10. Jose Alejandro Hurtado: 36 months (2015)

10. Faheem Mousa Salam: 36 months (2007)

Cauções: igualdade e meios

A nova geração portuguesa no domínio judiciário tem uma apetência progressivamente maior pelo sistema de justiça penal norte-americano. Pressentia-se isso quando da tentativa - abortada - de fazer vingar o sistema da "negociação da pena": configurado em tese por um estudo do Professor Figueiredo Dias encontrou eco amplo na magistratura do Ministério Público. A actual ministra da Justiça, à data em funções na Procuradoria Distrital de Lisboa, emitiu mesmo instruções no sentido de se fomentar tal sistema na área que tutelava. Isto apesar de - era esta a minha opinião e a de muitos - não haver lei que o legitimasse.
A sedução regressa agora com o que se está a passar no Brasil quanto à delação premiada, sistema que é protagonizado sintomaticamente naquele País por um escol de magistrados formados nos Estados Unidos da América. Entre nós, o Director do DCIAP, em declarações citadas pela comunicação social, exprimiu o que permite pensar ser um sentimento de simpatia por algo de semelhante.
Nunca escondi total aversão a qualquer das duas modalidades, por razões de que dei conta na ocasião.
Está agora na ordem do dia outro dos pilares da justiça norte-americana, o problema da gestão das cauções, quer enquanto medida de coacção, quer como medida de garantia patrimonial. Problema com várias dimensões, uma delas é poder funcionar como uma forma não igualitária de aplicação da justiça, sobretudo a funcionar como alternativa a outras medidas ablativas ou restritivas da liberdade.
Nesse aspecto, descontando o facto de os valores hoje decretados começarem a ser superavitariamente superiores ao que era tradição - assim os tribunais tivessem critérios igualmente pródigos no arbitramento de indemnizações às vítimas ! - o nosso sistema ainda não tem de gerir com acuidade aquilo que hoje é a questão premente nosStates [para mais ler aqui]. reconhecendo-se haver uma justiça para ricos e outra para pobres, ser através das cauções ditas "carcerárias" que se alcança de modo nítido a diferença.
O que não demonstra que não haja entre nós subjectivismo e por isso inexplicável diferenciação nos critérios da sua aplicação. E essa é uma questão de ordem pública e como tal exige reflexão e talvez regulamentação
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Autor do quadro: Vicent van Gogh

Crimes militares: prescrição à americana



É a imunidade pelo agraciamento quanto a crimes militares «In 1955 the Supreme Court ruled that veterans of the U.S. armed forces could not be court-martialed for overseas crimes that were not detected until after they had left military service. Territorial limitations placed such acts beyond the jurisdiction of civilian courts, and there was no other American court in which they could be adjudicated. As a result, a jurisdictional gap emerged that for decades exempted former troops from prosecution for war crimes.» [...] «In 2000 Congress attempted to close the jurisdictional gap with passage of the Military Extraterritorial Jurisdiction Act. The effectiveness of that legislation is still in question, however, since it remains unclear how willing civilian American juries will be to convict veterans for conduct in foreign war zones.»

Patrick Hagopian, autor do livro em que a questão da criminalização dos actos de guerra praticados por tropas americanas no exterior, é analisada, é leitor de História e Estudos Americanos na Lancaster University. Sobre a sua pessoa leia-se aqui. Quanto ao livro, editado em Novembro de 2013, poder ler-se mais aqui.

O Military Extraterritorial Jurisdiction Act e o respectivo processo legislativo estão publicados aqui.

O sonho americano


Fica como arquivo a crónica publicada na edição on line do jornal Público. Texto original aqui.


Não foi mais do que o sonho de uma noite de Verão, o de que o modelo americano de Justiça se poderia transpor para Portugal. A operação foi bem organizada mas o poder político não arriscou. Danos colaterais: ficaram evidentes as fragilidades do sistema.
As condições pareciam propícias.
Primeiro, Pinto Monteiro chegava ao fim do seu consulado como Procurador-Geral da República ante a ideia de que o Ministério Público eram bolsas autónomas de poder e não uma hierarquia organizada sob a regência do Palácio de Palmela.
O PGR vivia sob a suspeita permanente de que os processos de “certas e determinadas pessoas” corriam sob a sua alçada. Exigia-se, pois, a fiscalização democrática da Justiça pela participação popular, uma justiça pelo povo e para o povo.
Depois, a lentidão dos processos fazia constante notícia nos jornais, estava no auge a campanha de que os poderosos conseguiam através do expediente processual retardar a Lei, salvando-se dela. Reclamava-se, por isso, a celeridade e a eficácia, os critérios de excelência eram os que o senhor Henry Ford impôs nas suas fábricas de automóveis.
O admirável mundo novo tinha então o seu tempo histórico.
Politicamente, a esquerda judiciária tinha tido a sua oportunidade na geração antecedente, guindada ao sindicalismo e mesmo à função de modo a prosseguir com ela, até no foro, a luta de classes por outros meios. Tinham sido os tempos da gestão processual por critérios de selectividade, a criminalização retumbante de uns em detrimento de outros, a prescrição como modo de agraciamento do incómodo, a estigmatização de certas classes, de certas pessoas, de determinadas organizações.
Agora, supostamente mortas as ideologias, rendidos os seus radicais antecessores, os soixante-huitards das barricadas, às prebendas do capitalismo financeiro e às alcatifas do poder eurocrático, surgia a nova vaga da tecnocracia intelectual, misto de pragmatismo moral e de funcionalismo estatutário, para quem a Justiça era em breve uma forma de resolver processos com rapidez já que, afinal, anos de cultura inspectiva fazia com que a estatística contasse decisivamente para a promoção e, por essa forma, uma engenharia social, tal como a sanitária.
O “sonho americano” teve, então a sua janela de oportunidade. Foi título da revista Sub Judice na primavera de 1998, cantando então loas às virtudes do Supremo Tribunal enquanto órgão de poder na Federação dos Estados Unidos da América.
Seria o 2011 que traria, enfim, a possibilidade de se ir mais longe. De Coimbra o professor Figueiredo Dias emprestaria a sua indiscutível autoridade académica a uma ideia discutível: a da justiça negociada na forma dos acordos sobre a sentença penal, transacionada, em regime paritário, entre o acusador público o acusado e seu defensor e com envolvimento do próprio juiz a quem caberia julgar o caso. Com uma precisão científica a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em mudança de direcção, traria a ideia como bandeira programática para o campo da discussão.
Que resultou? No plano legal, nada, porque a Constituição impede esta justiça da combina e da transacção, permitindo embora que o consenso opere nos casos em que já foi consagrado por lei no domínio do Código de Processo Penal.
Mostraram-se, isso foi, as fissuras do edifício judiciário: ante a inacção do PGR, houve Procuradorias Distritais que emitiram orientações que viabilizam o sistema, outras omitiram conhecê-lo. Há, pois tribunais em que sim e tribunais em que não.

Arreando bandeiras

O economicismo que a troika impôs como critério à Justiça, mais o "liberalismo" que, vindo da política, contagiou a cultura judiciária, encontrou, de mãos dadas com a lógica do pragmatismo, agora os seus instrumentos de acção. Chamam-se funcionalização das magistraturas, taylorização do processo, negocismo sentencial.
Tudo com o aplauso dos que querem mais poder, a complacência dos que querem menos trabalho, a instigação dos que querem mais processos findos em menos tempo.
A aparência de moralidade com que o produto é servido chama-se a «filosofia do consenso».
Servida por magistrados tratados cada vez mais como simples funcionários, cuja valorização é aferida estatisticamente considerando como importante respectiva produtividade quantitativa, a Justiça é agora confrontada com um sistema pelo qual ao juiz caberá entrar em negociações com os procuradores e com os arguidos quanto à medida da pena para que, confessando estes, os processos andem mais depressa.
A isto junta-se o fenómeno galopante da desjudicialização, retirando cada vez mais casos aos tribunais e conferindo aos tribunais cada vez menos meios.
O modelo, dizem, seduzidos, vem da América. Percebe-se. Com o silêncio dos que desfraldaram em tempos bandeiras pela justiça soviética e pela justiça chinesa. 
Nada como o autoritarismo para conviver com o liberalismo. Divergem no que pensam quanto ao Estado, convergem no que sentem pela Nação: desprezo!

Quando os direitos humanos não bastam...

A quantos, esgotados de invocarem os princípios e as regras dos direitos humanos, aconselho que se socorram dos direitos dos animais. Talvez uma consulta a este Colega aqui, norte-americano, especialista em Direito dos Animais no Estado do Oregon ajude. Por um lado porque a animalidade é universal, e sobretudo agora que o modelo yankee de justiça exerce um tal fascínio na mente de muitos pensadores...

O pelourinho

Primeiro foi a sedução pela doutrina alemã, citada não só pelos problemas jurídicos que suscitava mas como solução para os nossos problemas jurídicos concretos. Sem curar de saber se a norma jurídica era idêntica, se o contexto da lei era semelhante ou se a realidade social era idêntica. Na esteira de Roxin, de Welzel ou de Stratenwerth resolvia a questão. Há livros jurídicos portugueses que dizem que «de acordo com a jurisprudência»...e citam acórdãos do Bundesgericshtof! Tudo começou com a 2ª Guerra quando a Alemanha exportou os seus Institutos Jurídicos criando o espaço vital.
Agora é a hipnose post-moderna pela criminalística yankee. No Congresso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses foi tema. No estudo que apoiou esse Congresso está patente.
Já escrevi sobre isso e disse o que pensava. Lembrei-me foi do tema a propósito deste «site» norte-americano, onde como na Idade Média se faz o pelourinho dos presos, mesmo sem culpa formada, mesmo que venham a ser absolvidos. Com fotografia e tudo! Bonito não? Edificante! Magnífico exemplo de um sistema que vem na nossa melhor tradição, não é? É só ver aqui. E meditar se a terra da Lei do Lynch serve de moral e de modelo!

Detenção: cooperação EUA/Europa

Está aberto a consulta, o Green Paper on the application of EU criminal justice legislation in the field of detention. Um texto fundamental, porque simultaneamente didáctico.
A ideia é fortalecer os laços de cooperação transatlântica e  ao mesmo tempo a coesão europeia em matéria de Justiça Criminal.
O documento pode ser encontrado aqui. O documento de base sobre o reforço da confiança no espaço judiciário europeu, tanto a nível do mandado de detenção europeu, transferência de presos, liberdade condicional, justiça para menores, etc, pode ser lido aqui. [click em PT, para a versão em língua portuguesa].

Hey, cowboy!

Primeiro veio no jornal, aqui, assim, e alguém, que afinal tinha sabido pelo jornal, também mo resumiu do mesmo modo: «A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) propõs esta terça-feira "uma revolução no Código de Processo Penal". O Ministério Público passaria a poder negociar a pena com o arguido, ao estilo americano; a fase de instrução seria resumida a um só debate; e a acusação teria de estar concluída dentro de um prazo a estipular, findo o qual, o processo abortaria».
Claro que ante um tal resumo o melhor é pensar coisa nenhuma: porque vago, porque impreciso, porque formulado em termos  de linguagem de leigo; «processo abortaria», «negociar a pena», «prazo a estipular», sei lá o quê.
Confesso que achei insólito que uma tal vacuidade merecesse logo pronto apoio da parte de um académico, como se vê aqui.
Na ânsia de encontrar algo de mais concreto fui ao site da ASJP, aqui. Nada ou as minhas dioptrias aumentaram.
Em suma: estamos a discutir chavões e generalidades. «Justiça à americana». Sobre isso, já deixei aqui vários posts que resumem o que penso acerca do essencial daquela Justiça. 
Espero que os pro-yankees se pronunciem sobre o que querem. Depois conversaremos. Até aqui são frases, das que enchem jornal.

Justiça americana

Frequentemente ressurge a polémica sobre a Justiça norte-americana. Talvez pela influência das séries da TV ela exerce uma certa perversa sedução em alguns intelectuais. Muitos que chegaram vindos de escolas filosóficas em que a última coisa que se esperava seria esta hipnose por tal modelo. Mas compreende-se: o justicialismo mediático exerce o seu fascínio e faz esquecer os horrores de um sistema baseado num critério de selectividade - o labelling approach pelo qual criminosos são os que o sistema elegeu serem-no  - de transacção permanente - o plea bargain - e de completa (des)judicialização do sistema prisional, para não falar da pena de morte e da brutalidade policial.
Já se percebeu que sou irremediavelmente contra. Disse-o neste blog, ocasionalmente, e mais extensamente aqui, em Coimbra, depois de ter escutado um juiz de um tribunal superior norte-americano.

Justiça à venda

Para os que acham que os juízes deviam ser eleitos, para os que julgam que os interesses instalados não tentam contaminar o judiciário, para os entusiastas vendedores da Justiça à americana, com as suas oportunidades de acordo, é só ir desfolhando, ter paciência e ler em inglês. Tudo aqui. Interactivo.

Pelas terras da Lei do Lynch

Já aqui alguém referiu as cantatas de elogio dos seduzidos pelas supostas virtudes do sistema de justiça penal dos Estados Unidos. Acho que basta ser espectador de TV - e eu de há muito que sou um muito relapso telepasmado - para se ficar com dúvidas de moralidade e certezas de inteligência. Num outro blog [aqui], onde guardo leituras de viagens por outros mundos, arquivei a recensão a um livro que os seduzidos devem ler, antes que sejam mentalmente estuprados na sua convicção.

A libação da ilibição

Adoptei neste blog uma regra de conduta a de não comentar os meus casos profissionais, nem os dos outros, nem aqueles que, nem sabendo quem neles intervém, sei pela comunicação social que existem. No primeiro caso é uma questão de deontologia, no segundo de ética e de prudência, no último de legítima defesa da minha credibilidade. É que sabendo [como sabemos] quantas vezes o fosso que existe entre aquilo que os media relatam e o que dos processos consta, manda o cuidado que haja parcimónia, para que se não tome a nuvem por Juno e não se fique roxo de cólera ao sábado e vermelho de vergonha à segunda-feira. 
Vem isto a propósito do caso do senhor DSK, como passou a ser conhecido o ex-líder do FMI. Mesmo que se trate de análises sociológicas sobre o modo como a comunidade instruída e a instrumentalizada reagiu ao caso. Prefiro não comentar.
Vejo, porém, aqui no blog Sine Die, Maia Costa constatar que, mau grado a "presunção de inocência" e a ilibação pela qual os procuradores americanos optaram quanto ao seu caso «foi destruído levianamente o seu bom nome, a sua carreira profissional, a sua vida de cidadão e político, à margem das regras do processo penal democrático».
Leio e penso duas coisas.
Primeira: pena que o mesmo pensamento, o mesmo espírito condoído não se tenha expressado em todos os casos daqueles que, portugueses, no nosso País, ante o nosso sistema de legalidade acusatória, foram arrastados ao pelourinho da infâmia, sob o batuque mediático concomitante, para depois saírem referidos numa mísera local que dá conta de que tudo deu em nada, quando têm a sorte de terem esse privilégio noticioso, tal qual os mortos o direito à necrologia das agências funerárias.
Segunda: falar de "presunção de inocência" e "ilibação" num sistema em que o capitalismo mental está presente no intra-muros da Justiça, com procuradores e advogados a negociarem o que se acusa e o que se esquece, a transaccionarem quem entrega quem à morte e quem beneficia do olho vesgo de uma justiça selectiva, que usa rufiões pseudo-arrependidos e se ufana de ter conseguido filar Al Capone nem que tenha sido à conta dos impostos...
Nesse admirável mundo novo, procuradores eleitos elegem quem são os culpados. 90% dos casos nem chegam aos tribunais. 
Ante isso de que valem lições de moral quanto ao senhor DSK? Sabe-se lá onde acabou a verdade dos factos e começou a mentira do processo!
Que me perdoe o Maia Costa por ter escrito isto.Serei mais anti-yankee que ele, ó paradoxo da vida, mas a dialéctica tem destas.