Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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As consciências adormecidas

De todos os lados surgem avisos: os populismos sociais tornam-se autoritarismos políticos. Que sejam reposições do nazismo, do fascismo, supõe apenas que a História se repita pela mesma forma; pode ser diverso apenas o modo. Por isso no Direito há que ficar aviso: afinal, o totalitarismo também ajustou o jurídico às suas necessidades e dele se serviu e nele encontrou os seus servidores. E muitas das suas criaturas perduraram. 
Há os que, vivendo hoje o mundo da eficácia e do utilitarismo, trocam o saber como foi pela interesse quanto ao que há. 
Nem tudo está, porém, perdido. Fica para esses outros esta nota de leitura.

Eugenio Raul Zaffaroni, magistrados e professor argentino escreveu, Francisco Muñoz Conde, professor em Sevilha, prefaciou. Editado em 2017 em Buenos Aires. 
Trata-se de um aprofundado e documentado estudo sobre quanto o nazismo construiu para o seu Direito, desde a escola jurídica de Kiel [essa Stosstruppfakultät, Faculdade de Tropa de Assalto - e nela os nomes de dois dos seus fautores principais, Georg Dahm [1904-1963] e Friedrich Schaffstein [1905-2001] - à arquitectura do Estado total nacional-socialista, como estrutura que o Direito serviria, mas sobretudo dos conceitos jurídicos que dali emergiram como instrumentos de sustentação, defesa e disseminação do III Reich e seu espaço vital.


Estou ainda a ler, porque não é texto de apreensão imediata e alguma da forma de expor reconduz o leitor à necessidade de clarificar o sentido do discurso, por vezes reiterativo. 
Mas de imediato permito-me ir buscar ao texto do prefácio e da narrativa o elenco, parcial seguramente, do que foram os instrumentos  forjados pelos teóricos do nazismo jurídico, aptos a dar, à boa maneira alemã, consistência teórica e legitimação normativa às ideias que, oriundas da política que o Führerprinzip definia e que funcionavam como critério último de interpretação das leis e guia seguro para a sua correcta aplicação, corporizando esse autêntico "vendaval jurídico" na Europa dos anos trinta e quarenta do século vinte e a que poucos resistiram - entre estes Gustav Radbruch - e muitos cederam e se adaptaram- como Edmund Mezger.

Ei-los, pois  [entre tantos], no plano da dita "dogmática" jurídica:

-» violação do dever como núcleo do conceito de ilicitude [do "injusto"];
-» crítica ao conceito de bem jurídico como delimitador dos limites da tipicidade e critério orientador da interpretação normativa;
-» concepção de Direito Penal de autor;
-» formulação do Direito Penal da vontade;
-» hiper-valorização dos crimes omissivos;
-» crítica da teoria da não exigibilidade;
-» demolição do conceito de culpabilidade;
-» formulação de uma teoria unitária do crime;
-» admissão da analogia incriminatória;
-» profusão de tipos de crime de perigo abstracto;
-» punição da tentativa de instigação;
-» punição de actos preparatórios e de tentativas inidóneas;
-» tipificação da associação criminosa com fundamento no mero acordo de vontades;
-» sobrecarga punitiva nomeadamente em crimes contra interesses públicos.

Dir-se-à que há em alguns conformações oriundas do passado; sem dúvida, mas com uma reformulação apta a torná-los úteis à Nova Ordem.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.


Processo do facto, Direito da culpa...


Que o julgamento visa o conhecimento do facto e da pessoa que foi seu agente é um dado essencial do nosso sistema penal, pois que importa saber o que fizeste e quem és tu. 
Que se chegou a pensar em 1986, quando da feitura do CPP, num faseamento da audiência em dois momentos, aquilo a que os franceses chamam a césure, pelo qual num momento se julgava o facto - sem cuidar de saber quem é a pessoa para não contaminar a apreciação da prova com a ideia já adquirida de quem era o seu possível autor - e em outro se apurava a personalidade e as condições sociais, também é certo, certo sendo também que acabou - em nome do chamado pragmatismo - por se consagrar um sistema pelo qual tudo se amalgamava, afinal, no mesmo momento, o reconstituir o que e o quem.
Ora, pelo que se vê, foi necessário a Relação de Évora ter de intervir para que esse quem fosse conhecido e o processo penal não se tornasse apenas o processo do facto, contrário com um Direito Penal que se diz ser o da culpa.
Eis o decidido a 04.04.13 [processo n.º 9/11.9GTSTB.E1,  relatora Ana Brito, texto integral aqui]: 
«1 - Enferma do vício da insuficiência da matéria de facto, da alínea a) do artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, a sentença condenatória que não contem os factos necessários para a decisão sobre a pena, nos quais se incluem os factos relativos à personalidade do condenado.
2 - Se o arguido está ausente, a prova dos factos pessoais - relevantes para a medida da pena preventiva, geral e especial - pode fazer-se em julgamento, através do relatório social ou por outro meio de prova lícito, não devendo o tribunal bastar-se com o teor do CRC. A indispensabilidade do conhecimento da personalidade do condenado não diminui na razão inversa da dimensão do seu passado criminal.
3 - Na ausência de factos relativos à personalidade do condenado, aceita-se que o tribunal decida sobre a pena com base apenas no teor do C.R.C., quando tentou, mas não logrou, obter mais elementos.»

Os quase-delitos

Eram os quase-delitos, os cometidos sem dolo, com mera culpa. Numa época em que o Direito Penal parecia desproporcionado em extensão. Hoje que diríamos quando só até a severidade das coimas para as contra-ordenações parece nivelar-se ao rigor punitivo das penas para os crimes. A foto é a de uma página do livro de Direito Criminal escrito por Pascoal José Melo Freire [e não «e Freire» como tantas vezes se erra]. Escreveu em latim. Tenho um exemplar. Este está ao alcance de todos, digitalizado, no site da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, aqui: Paschalis Josephi Mellii Freirii ... Institutionum juris criminalis lusitani ... liber singularis. - Olisipone : Ex Typographia Regalis Academiae Scientiarum Olisiponensis, 1794.