Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Remissão nas contra-ordenações: incerteza e insegurança

Por gentileza do Exmo. Presidente da Comarca de Santarém, Dr. Luís Miguel Caldas, foi-me dada oportunidade de intervir nas II Jornadas do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que tiveram lugar no passado dia 20 de Abril. 

Retomei, com maior desenvolvimento, o tema que já expressara quando das jornadas sobre a mesma matéria levadas a cabo pelo Forum Penal na cidade do Porto em Setembro de 2017: o problema das remissões efectuadas nos artigos 32º e 41º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social para o Código Penal e para o Código de Processo Penal.

Artigo 32.º
(Do direito subsidiário)


Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.

Artigo 41.º
Direito subsidiário


1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.

Permito-me deixar aqui alguns apontamentos dessa intervenção que será publicada na íntegra, excertos em que exprimo sentir crítico quanto à devolução indeterminada e contraditória que aquelas normas materializam como se os ordenamentos remetidos fossem congruentes com o regime das contra-ordenações e somo se isso não abrisse, como abre, a porta à ambiguidade e à insegurança jurídica, fruto da casuística com que as autoridades reguladoras e a jurisprudência encaram a técnica remissiva, tudo sob a complacente fiscalização «de baixa intensidade» do Tribunal Constitucional:


«É que à indeterminação na devolução [remete-se, não para preceitos específicos da lei, mas para todo um sistema legal junta-se a ductilidade da remissão [«devidamente adaptados», se diz para a remissão em favor do processo criminal e «em tudo o que não for contrário à presente lei», se afirma na remissão para o Código Penal] e – eis o ponto de agonia do sistema – tratando-se de sistemas normativos que, não comungam da mesma natureza pois se o sistema remetido é sancionatório criminal e processo criminal, sistema remetente é algo sobre cuja natureza ainda não se ganhou sequer certeza jurídica, tanto na literatura como na jurisprudência, pois sobre ele encontramos inúmeras soluções contrastantes.»

[...]

Mas mais: é que o núcleo essencial do problema já não é a existência de diversidade entre os ilícitos criminais e contraordenacionais e, por isso, dos respectivos processos, mas sim poder não existir denominador comum que os considere parte daquele Direito sancionatório ou punitivo em que haja regras que sejam comuns não direi por paridade, mas, ao menos, por um mínimo de razão.

[...]

Ficciona-se haver uma «unidade do sistema jurídico», mas sucede que, como vimos, é de diversidade que se trata, neste caso em que o legislador determina a remissão no quadro de um sistema legal sobre ilícito de mera ordenação social para outro sistema legal de natureza jurídico-criminal em sentido amplo, pois que englobando o processual penal e a execução das decisões. 

Ficciona-se fundar-se o sistema numa situação de analogia quando, de facto, ao ter previsto o funcionamento da regra da adaptabilidade, o legislador reconhece que de analogia imperfeita ou até impossível se trata. 

Por isso e por procurar evitar estas dificuldades construtivistas inerentes a pensarmos o problema como se de lacuna se tratasse, e por seguramente por lhe percepcionar as consequências, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2014, de 06.03.2104 [Diário da República, 14.04.2104], considerou que o Direito subsidiário aqui em causa «tem a ver com o elenco das fontes de direito mobilizáveis como critério para a sua realização, diferente no problema das lacunas vai ínsita a ausência de uma fonte ou critério positivo para essa objectivação». 

Ficciona-se, mais ainda, que se tenham presente as condições específicas do tempo em que é aplicada a norma, mas estamos hoje a aplicar um sistema legal contraordenacional que foi gizado para suceder ao regime das transgressões e contravenções, ou seja, aplicável às infracções de menor relevo social, que não colocam em causa bens jurídicos fundamentais, isto quando estamos hoje ante a possibilidade de coimas de vários milhões de euros e de sanções acessórias altamente lesivas e estigmatizantes, mais graves até do que é o quotidiano no sistema penal quando opera em se de penas não privativas da liberdade. 

Ficciona-se, enfim, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados quando aquilo de que estamos a curar é de uma devolução indeterminada, maleável, incerta no consequente e imperfeita no antecedente: o que se remete? Para onde se remete? Até que ponto se remete? 

Tudo é insegurança: equipara-se o diferenciado, presume-se identidade normativa onde não existe sequer analogia jurídica. E torna-se isso lei repressiva. O insuportável não é diferente disto. 

Em suma: como o Direito Criminal e seu processo gozam de tutela constitucional, estamos ante a possibilidade de, por acto do intérprete, por mera manipulação de etiquetas, recusar a garantia constitucional a zonas específicas do Direito contraordenacional, bastando que considere e, no caso, a remissão para a norma criminal ou processual criminal não deverá efectuar-se.»